Causidicus
2003-06-30
Património Cultural – saudades do futuro.
Ao frenesim mediático - próximo de uma agitprop de Estado - dos tempos de Manuel Maria Carrilho, veio o Ministro da Cultura Pedro Roseta contrapor uma postura discreta, com largos tempos de análise e assumido distanciamento dos media.
Afirma o Ministro repudiar “a política-espectáculo baseada em anúncios mediáticos” e acrescenta que “os tempos do património não são os da comunicação social” (“Público”, 09 de Maio p.p.).
A oposição clama que a Cultura está em “estado de sítio” e o Ministro paralisado. O Ministro responde que a política cultural se faz “a longo prazo” e com critérios de sustentabilidade.
Neste momento é ainda prematuro julgar uma política que se deve afirmar numa legislatura. Mas o tempo da reflexão e preparação de medidas está a esgotar-se.
Na área do Património, uma das mais nucleares e sensíveis do MC, a anunciada reorganização institucional - abrangendo o IPA, o IPPAR e eventualmente o IPM ou até a DGEMN – arrasta-se desde Maio de 2002. Ainda não se conhecem publicamente as grandes linhas das alterações em preparação, não sendo possível ajuízar da credibilidade das prometidas mais valias face ao modelo anterior.
A actual Lei do Património Cultural (Lei n. 107/2001), espinha dorsal do corpo normativo que regula o sector, foi publicada em 2001-09-08, entrando em vigor 60 dias depois em tudo o que não necessite de desenvolvimento (artº. 115º.). A legislação de desenvolvimento deveria ter sido aprovada pelo Governo, preferencialmente de forma unitária e consolidada, no prazo de um ano (artº. 111º.) há muito esgotado.
Compreende-se a magnitude da tarefa de criar a legislação de desenvolvimento da Lei nº. 107/2001 e os atrasos que a mudança de Governo terá induzido nesse processo. Não se compreenderá que o atraso no desenvolvimento desta Lei, ao menos nos aspectos essenciais, ultrapasse os doze meses, sob pena de se suspeitar que estará votada ao destino da anterior Lei nº. 13/85, que nunca chegou a ser regulamentada.
Importa pois que, sem abdicar da adequada ponderação, o Ministro confira liderança e prioridade a este dossier, pondo os intelectuais ao serviço do Ministério a fazer trabalhos forçados durante o Verão (a melhor época para se trabalhar em Lisboa), por forma a que no Outono possa ser apresentada ao país a legislação de desenvolvimento da Lei do Património Cultural e a reorganização dos Institutos dessa área. Sob pena de o Património Cultural continuar hipotecado a saudades do futuro.
Garzón em Lisboa
A convite do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, o Juíz Baltazar Garzón profere uma conferência sobre: “O Terrorismo Internacional e a Defesa do Estado de Direito Democrático”. Sexta-Feira, 11.Julho.2003, pelas 18:00 horas, na Universidade Católica Portuguesa – Auditório Cardeal Medeiros.
Escutas
A vida não está fácil. Só consegui que o Posto me escutasse transcrevendo um proto-blog com 216 anos...
2003-06-29
PEQUENA ELEGIA CHAMADA DOMINGO
O domingo era uma coisa pequena.
Uma coisa tão pequena
que cabia inteirinha nos teus olhos.
Nas tuas mãos
estavam os montes e os rios
e as nuvens.
Mas as rosas,
as rosas estavam na tua boca.
Hoje os montes e os rios
e as nuvens
não vêm nas tuas mãos.
(Se ao menos elas viessem
sem montes e sem nuvens
e sem rios...)
O domingo está apenas nos meus olhos
e é grande.
Os montes estão distantes e ocultam
Os rios e as nuvens
e as rosas.
Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa (1940-1986) - I vol., 3a. ed., Círculo de Leitores, pp. 19-20.
2003-06-27
Blogs de antigamente
Em 1787:
“Domingo, 11 de Junho
Janto hoje no campo em casa de (...), é um homem de carácter, que não aceita cargos nem civis nem militares, e que faz gala numa insolente franqueza, coisa que, penso eu, muito deve desagradar neste país servil, onde a independência, quer da fortuna, quer dos sentimentos, é um crime que raramente fica impune.”.
(In Diário de William Beckford em Portugal..., 3a. Ed., Biblioteca Nacional, 1988, pp. 56-57).
Pérolas do PPP (Pensamento Parlamentar Português)
“No nosso tempo, o discurso e a escrita política são largamente a defesa do indefensável”.
George Orwell, Politics and the English Language (in “Actual”, 2003-06-21).
Os parlamentares candidatos à justificação da falta pela ida à final da Taça UEFA, têm-se desdobrado em exercícios de politiquês dignos do maior apreço da Nação, pelos contributos imorredouros dados ao PPP.
Relata hoje o "CM" que um Exm. Deputado pergunta: “Se eu sou eleito pelo círculo do Porto, porque é que não posso ir ver o Futebol Clube do Porto?"
Ai que o Senhor Deputado não sabe! (direitos de autor: Polilon).
Basta uma leiturinha da nossa Constituição: artº. 152º., nº. 2: “os Deputados representam todo o país e não os círculos porque são eleitos”; artº. 159º., al. a): “Constituem deveres dos Deputados: comparecer às reuniões do plenário e às das comissões a que pertençam”.
Se a AR não organizou e autorizou uma representação parlamentar no evento, os respeitáveis parlamentares que foram a Sevilha não estavam dispensados do dever de comparência. Poder ir podem, mas por sua conta e risco como sucedeu ao comum dos cidadãos. A menos que aprovem a tal leizinha que ontem sugeri e que até dava jeito...
Segundo o "DN" de hoje, outro Exm. Deputado indigna-se: “justifiquei a minha falta como trabalho político”, acrescentando não caber ao Presidente da AR avaliar os fundamentos dessa justificação. Já andávamos todos desconfiados de que “trabalho político” encerra, por vezes, uma insanável contradição entre os termos. Mas S.E. saberá melhor do que humilde povo que o elegeu.
Ficando a aguardar mais pérolas do PPP, para enriquecimento das glórias intelectuais da Pátria, inclino-me com a maior deferência por SS.EE..
Haja respeito por quem tão duramente trabalha!
Desvanecido
Pela atenção do blog casadoiro!
2003-06-26
Haja respeito pelos políticos.
Em 21 de Maio o FCP ganhou em Sevilha a final da Taça UEFA/2003.
A Assembleia da República não organizou uma representação parlamentar ao evento, que aliás se dispensava, pois o nosso habitual provincianismo já estava bastante representado.
Soube-se hoje pelo DN que alguns líderes parlamentares querem ver justificadas as faltas de dezenas de deputados que se deslocaram a Sevilha, por iniciativa própria ou a convite do FCP.
Numa altura em que se apela à responsabilidade e produtividade dos portugueses, o Parlamento vem uma vez mais dar ao país elevados exemplos a seguir. Mas já que estamos na sede do poder legislativo, convirá que SS. EE. os Deputados aprovem uma Lei, garantindo a todos os cidadãos idêntica regalia, nas modalidades e competições que o Estado Português entenda corresponderem a supremos desígnios nacionais.
Do peido no discurso jurídico
O Abrupto introduziu em 22 de Junho a temática do “peido” na blogosfera, a pretexto de uma cantiga de escárnio relatando a resistência do alcaide de Celorico ao Conde de Bolonha (futuro D. Afonso III), no fiel cumprimento da homenagem prestada a D. Sancho II.
O “peede” do alcaide fez-me recordar uma decisão judicial (que de momento não consigo localizar e cito de memória), em que um arguido era acusado de comportamento injurioso, descrito nos autos como “emissão de ventosidade anal com postura ofensiva”. A linguagem formal e codificada dos juristas é na verdade digna sucessora do latim episcopal que fez as delícias de JPP e revela por vezes requintes de criatividade assinaláveis...
O post de JPP levou-me a rever relatos desta história exemplar, em que os alcaides de Coimbra e Celorico da Beira mantiveram a palavra dada a D. Sancho II, até à morte deste, ignorando todos os perigos, conveniências e influências políticas e religiosas. Dizem-me que um dos mais interessantes, a Crónica de Cinco Reis de Portugal (manuscrito anónimo quatrocentista, geralmente atribuído a Fernão Lopes, publicado por Magalhães Basto na ed. Civilização), está esgotado. Acontece neste país em que pululam os eventos pseudo-culturais e escasseiam as publicações de fontes básicas para a investigação. Valha-nos S. Almocreve das Petas!
Blogs
Saudações ao novíssimo O Céptico. Trata-se de um perigoso espécime de metafísico com sentido de humor...
Carlos Vaz Marques (Pessoal e ... transmissível) tem um blog. Não é preciso dizer mais nada.
Tentei resistir mas acabei por casar.
2003-06-25
Lisboa: a próxima “Aldeia Histórica”?
Dos dicionários: Aldeia, s. f. – Pequena povoação rural de poucos vizinhos, de categoria inferior a Vila, na qual predominam actividades agrícolas.
Noticiou o último “Expresso” que Belmonte e Trancoso passaram a integrar o programa das “Aldeias Históricas” promovido pela Comissão de Coordenação da Região Centro. Juntam-se a Almeida, Castelo Mendo, Castelo Novo, Castelo Rodrigo, Idanha-a-Velha, Linhares, Marialva, Monsanto, Piódão e Sortelha, completando o núcleo de doze localidades a que se prevê, para já, atribuir esta classificação.
A decisão é no mínimo discutível, mas, como tudo o que se refere ao Portugal profundo, não teve grandes repercussões.
O programa das “Aldeias Históricas” tem o potencial de conjugar a valorização do património com a revitalização de comunidades do interior, criando oportunidades de desenvolvimento sustentável assente no turismo cultural. Cedo se constatou porém que o património cultural era acessório na estratégia do programa (não obstante os meritórios investimentos nessa componente), estando subordinado a objectivos imediatistas de outra índole, como a construção de um “pacote turístico” assente em valores patrimoniais tidos como de grande visibilidade e aceitação no mercado.
A larga maioria das dez primeiras localidades seleccionadas apresentava um perfil patrimonial algo repetitivo, assente em núcleos construídos de tradição medieval, em regra dotados de castelos e outros amuralhados. A sua concentração espacial e características predominantes teriam como rótulo mais apropriado “Fortalezas da Raia”, a não ser que se defenda que o qualificativo “histórica” se reporta a um período cronológico bem delimitado.
A inclusão de Almeida nesse grupo inicial gerava já alguma perplexidade. Não pela falta de atributos históricos e patrimoniais, mas pela sua dimensão e importância administrativa, dificilmente compaginável com o conceito de “aldeia”. A subversão do conceito é agora generalizada com a integração de Belmonte e Trancoso, importantes vilas e sedes de concelho que sob nenhuma perspectiva se podem considerar “aldeias”. Não esquecendo outras vertentes do notável património destas vilas (designadamente no que se refere à presença judaica e a vestígios arqueológicos que são referência obrigatória), não deixa de ser curioso que uma vez mais se insiste no mono-produto núcleos medievais fortificados, imagem que é seu primeiro cartão de visita.
Não faltam na Beira Interior e na restante região Centro verdadeiras aldeias, em zonas com ocupações humanas que remontam, por vezes, ao neolítico antigo. Muitas dessas povoações estão documentadas desde épocas bem anteriores à fundação da nacionalidade e possuem paisagens, vestígios arqueológicos, património construído, artístico e tradições que, pela sua diversidade, tornariam mais atractivo e representativo o grupo das “Aldeias Históricas”.
São localidades hoje sem peso político e esquecidas dos poderes. Só ao abrigo de um programa deste tipo poderão ter oportunidades de futuro.
Belmonte e Trancoso têm, apesar de múltiplas carências, outro peso, outros recursos e outras oportunidades. Não havia necessidade de as travestir de “aldeias”, numa operação de marketing com algo de enganoso...
A menos que a noção de “aldeia” tenha a elasticidade de conveniências várias e então até Lisboa poderá ingressar no rol das “Aldeias Históricas”. Afinal, sempre tem um castelo e o Dr. Santana Lopes por certo não enjeitará mais uns milhões para requalificação urbana.
Blogosfera a ferver (2)
Os candidatos a Lineu da blogosfera estão feitos. Há cada vez mais blogs irredutíveis a classificações. Ainda bem.
Nostalgia transmontana
Belo post ontem no Aviz sobre negrilhos e Trás-os-Montes, na sequência da publicação de um poema de Miguel Torga ("A um Negrilho") no Tempo Dual (22 Junho). Em S. Martinho de Anta confirmam que Torga tinha grandes conversas com aquela árvore, que é o principal monumento da terra natal do poeta.
2003-06-24
Constituição Europeia?
Elementos para reflexão:
- Projecto de Constituição Europeia apresentado pela Convenção;
- Conclusões da Presidência - Conselho Europeu de Salónica - Junho/03;
- Artigo de Vital Moreira no Público de hoje ("Duas Constituições").
2003-06-23
Blogosfera a ferver
Regressado de mini-férias, debaixo de um sol tórrido, surpreendo-me com a blogosfera recheada de novidades escaldantes.
Os media tradicionais (cabulando, como sempre, as respectivas agendas) afadigaram-se nos últimos dez dias numa torrente de artigos sobre os blogs, não dando descanso ao Blog Clipping. O safari pela blogolândia culminou com as 3 páginas 3 do Destaque do Público de hoje (de registar a rigorosa e bem informada prestação do “pioneiro” António Granado).
A exposição aos media provocou curiosas reacções na comunidade bloguista, mais habituada a comentar do que a ser comentada do exterior. Há dias que são do caçador, outros da caça...
As boas novas não param. Os incontornáveis Infames Pedro Mexia e Pedro Lomba estão de volta. Francisco José Viegas mostra como um homem de Foz Côa constroi, em poucos dias, um blog alentejano de referência. Diariamente têm sido lançados novos blogs, interessantes, imprevistos e diversificados na temática.
A silly season tem salvação!
Umbiguismo (1)
Contrariando as probabilidades, alguns notaram o aparecimento do Causidicus. O Abrupto e o Linha dos Nodos fizeram-lhe referências. O Aviz e o Cidadão Livre incluiram-no nos links. Envio-lhes uma cordial saudação, com os agradecimentos da ordem. Se falhei alguma referência, desde já me penitencio.
Umbiguismo (2)
O Causidicus não tem links, até uma próxima revisão do template.
Para além dos blogs acima referidos, lê, com a regularidade possível, alguns grandes clássicos, como o MEC, os Marretas, o Gato Fedorento, A Montanha Mágica, Espigas ao Vento, Mar Salgado, Valete Fratres, País Relativo, Blog-de-Esquerda, Cruzes Canhoto, entre outros.
Está também a gostar de ler muitos dos mais recentes, como o Desactualizado e Desinteressante, Guerra e Pas, Latinista Ilustre, Portugal dos Pequeninos, O Comprometido Espectador e o Socio(b)logue.
De outros que agora não ocorrem e de novas revelações irá dando notícia.
“Blogue”? Não, obrigado.
Não consigo aderir à moda do “blogue” que parece tender a dominar.
Não vejo vantagem teórica ou estética no aportuguesamento da grafia de expressões estrangeiras intraduzíveis em português.
“Blogue” faz para mim tanto sentido como “templeite” ou “interrede”.
Mas gostos não se discutem...
Olho Vivo
Eduardo Cintra Torres continua em grande forma. Hoje faz uma radiografia implacável dos comentadores políticos televisivos.
2003-06-14
Ao sétimo dia descansou
Iniciado na Segunda-Feira passada, o Causidicus vai de férias logo no sétimo dia. Possivelmente ninguém repara ... mas vai estar uns dias sem actualização. Que isto de mini-férias tem de ser a sério, com abstinência de internet, telemóvel, televisão e jornais (excepto talvez o Público, para não ser fundamentalista). Como não quero que falte nada na minha ausência, despeço-me com um formulário que a todo o momento pode ser útil:
Arguição de cabala - um formulário
“É dolorosa a necessidade que me obriga a refutar as infundadas arguições e as torpes calúnias que me têm sido assacadas. Chegada é a ocasião de mostrar ao público a origem e as diferentes fases dessa guerra iníqua, desleal e traiçoeira, que implacavelmente me declararam meus inimigos. - Curtido de angústias e sofrimentos, pela longa e atrós perseguição de que tenho sido vítima, espero levar a cabo a tarefa sumamente espinhosa e de tanto melindre, que encetei, e fazer aparecer a verdade dos factos, como o sol ao raiar da aurora.”
(João Brandão, Apontamentos da vida de João Brandão – Por ele escritos nas prisões do Limoeiro envolvendo a história da Beira desde 1834, 1870, 2a. Ed., Lisboa, Vega, 1990).
Até breve.
A IMAGEM DA JUSTIÇA
1 - Togados para impressionar?
Agora que já acalmaram as ondas de choque do famoso editorial de José Manuel Fernandes sobre a indumentária do Juíz Dr. Rui Teixeira (Público, 29 de Maio), talvez valha a pena comentar um aspecto que passou à margem do debate público.
A questão da t-shirt do Juíz foi largamente g(l)osada na imprensa escrita. Contei mais de uma dúzia de artigos, cartoons e outras referências. Pessoalmente pouco me preocupei com a dita t-shirt. Naquelas circunstâncias, para além de um exercício legítimo de liberdade individual por parte do Dr. Rui Teixeira, a indumentária do Juíz revelava auto-confiança, desassombro e nenhuma preocupação com as conveniências de gestão da imagem. No corpo de um Magistrado envolvido no caso mais mediático do momento, a t-shirt pareceu-me uma sólida garantia de maturidade e de imunidade à histeria mediática vigente. Na altura, só me preocupou a razão pela qual a comunicação social insistia em interpelar este Juíz na via pública, com questões às quais era óbvio ele não poderia responder. Pior ainda, difundiu-se a imagem do Juíz, pondo em causa a sua privacidade e a sua segurança, sem que se vislumbrasse qualquer relevante interesse público nessa difusão. Mas adiante.
Menor atenção mereceu a afirmação do editorialista de que nos tribunais “se continuam a utilizar togas e a respeitar um conjunto de formalidades destinadas a construir uma imagem de severidade e respeito”.
Muitos insistem de facto em ver a administração da Justiça como um exercício de poder segundo regras inacessíveis ao comum dos mortais, que é regido por rituais e por solenidades destinadas construir uma imagem que promova o respeito que lhe é imprescindível.
Num Estado de Direito democrático esta concepção é inaceitável.
A Justiça e os seus agentes devem legitimar e prestigiar socialmente a sua acção pela eficácia e rigor dos seus métodos, pela independência, zelo e competência dos profissionais intervenientes e pela sólida e clara fundamentação das decisões, não se subordinando a mecanismos de sacralização ou de gestão de imagem para consumo dos media ou do público.
Se a lei impõe, em determinados actos, o uso de um traje profissional (a “beca” dos Magistrados ou a “toga” dos Advogados), essa imposição não deve entender-se como visando “construir uma imagem de severidade” ou outra, como se de um adereço cénico para espanto do vulgo se tratasse.
O uso de trajes profissionais justifica-se, em actos formais de processo, para identificar os intervenientes com a função que exercem e para uniformizar a sua aparência, independentemente das características físicas, prestígio, posses ou opções pessoais de cada um em matéria de vestuário, uma vez que o que deve relevar, naquele momento, é a função e não o homem que a corporiza.
Já em 1935 Henry Robert perguntava:
"Não tem razão de ser este traje pelo qual um advogado se distingue
imediatamente da multidão que enche uma sala de audiência? Não tem sua
grandeza este uniforme (...) que é o mesmo para o antigo, para o mais ilustre e
para o último dos estagiários? " (O Advogado, p.122).
Calamandrei foi bastante enfático no papel igualizador da toga, que deve prevalecer sobre meras preocupações de solenidade:
"Gosto da toga não pelas mangas largas, que dão solenidade aos gestos, mas
pela sua uniformidade estilizada. Corrige de modo simbólico todas as
intemperanças pessoais e nivela as desigualdades individuais dos homens
sob o uniforme escuro do cargo. A toga, igual para todos, reduz aquele que
a envergou a ser na defesa do direito "um advogado". Da mesma forma, quem
se senta no alto do Tribunal é "um juíz", sem acréscimo do nome ou de
títulos.
É de muito mau gosto fazer aparecer sob a toga, na audiência, o professor
Tito ou o comendador Caio (...)" (Piero Calamandrei, Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados, p. 43).
Estas mesmas razões estão na base do uso da generalidade dos trajes profissionais. No entendimento que perfilho, a toga e a beca exercem o mesmo papel que a farda de um polícia, de um fiscal dos transportes públicos ou que o uniforme de um enfermeiro. A dignidade que lhes é reconhecida deriva da profissão que identificam. Mau seria que a dignidade da profissão repousasse no traje.
Uma audiência não é um espectáculo e os servidores da Justiça não se vestem para impressionar.
Justiça “Cuba Libre”? Noticia o "DN" de 12 de Junho que os E.U.A. se preparam para iniciar o julgamento dos detidos em Guantanamo, naquela mesma base, na qual estarão a construir ”salas para julgamento, celas para detenção e uma câmara de gás para execuções”. Já terão sido nomeados juízes, acusadores e um defensor oficioso, todos militares dos Estados Unidos. Trata-se de um assunto que carece de aprofundamento e ao qual provavelmente voltarei, mas algo deve ser dito de imediato. Ninguém pode esquecer – ou perdoar – o inominável crime de 11 de Setembro de 2001. Porém, terá de se exigir que os E.U.A., em especial nestas circunstâncias, saibam estar à altura do seu legado civilizacional. Os E.U.A. não podem perder a razão, violando princípios elementares de Direito Internacional e a sua própria Constituição, pondo em causa a matriz do Estado de Direito que é apanágio das democracias ocidentais. Já o estão a fazer nas condições de detenção em Guantanamo, internacionalmente condenadas, até pelos seus aliados mais próximos. Não poderão continuar num caminho em que, esquecendo os seus valores e as suas leis, estarão a consumar a vitória do terrorismo sobre as sociedades livres. No julgamento de alegados responsáveis pelo atentado de 11 de Setembro, não podem ser ignoradas regras básicas como as relativas à fixação da competência do Tribunal, independência dos juízes, possibilidade de recurso jurisdicional, liberdade de escolha do defensor, garantias de contraditório e de defesa, nulidade de provas obtidas por meios ilegais, publicidade da audiência, entre outras. A não ser assim, é preferível que os E.U.A. evitem uma série de maçadas, entregando os acusados ao sistema judicial do vizinho Fidel Castro, com a condição de os mesmos serem considerados perigosos dissidentes...
Telenovela brasileira: Sobre o “pronunciamento” de Fátima F. já tudo foi dito - no único sentido possível - e não vale a pena insistir. O respeito por esta senhora (e por tabela pela “classe política”), a reputação das práticas de financiamento dos partidos e a credibilidade da informação-entretenimento das nossas TV’s, contam-se entre as principais vítimas do episódio. E ainda ninguém apareceu a pedir perdão à memória de Barros Moura.
2003-06-12
O RESPEITO PELOS POLÍTICOS
“So are they all, all honourable men”
W. Shakespeare, Julius Caesar, Act 3, Scene 2
Sua Excelência o Presidente da República foi aos Açores assinalar o 10 de Junho.
À chegada, dizem os jornais, “sentiu o apelo democrático da Pátria” e, mesmo correndo o risco de pecar por corporativismo, exigiu, num registo emotivo, “respeito” pelos políticos.
O nosso Primeiro Magistrado é um homem simpático e digno e um político estimável, descontado o discurso um tanto ou quanto obscuro. Labora, porém, num óbvio equívoco. O dito “respeito” não se dá, nem se exige, conquista-se.
Ora, se é bem possível que exista “muita gente de bem” na política, como confia o nosso PR, o certo é que a praxis dominante na nossa “classe política” é a principal causa do seu descrédito e da falta de respeito de que se queixa.
Já antes defendemos que todas as generalizações são abusivas. Porém, a dimensão do fenómeno que o vibrante apelo do PR veio reconhecer, não pode ser escamoteada. Muitos portugueses não reconhecem nos nossos políticos (salvo honrosas excepções) as qualidades exigíveis aos servidores do interesse público.
Parece ser opinião geral que, em regra, os políticos não têm convicções, ideias ou estratégias que não sejam as da conquista e manutenção do poder, pelo poder, a todo o custo. Que se desgastam em tácticas de curto prazo, em que valores e princípios éticos são sistematicamente postergados. Que exploram à exaustão os mecanismos do Estado-espectáculo, esgrimindo em torno de “factos políticos” muitas vezes artificiais e tratando os eleitores como mentecaptos, com a conivência dos media em que imperam interesses económicos. Que cultivam o clientelismo e o caciquismo a todos os níveis, promovendo sistematicamente incompetentes seguidistas. Que a endogamia é cada vez maior, despertando-se para a política ao que parece no berço e dela se fazendo profissão sem ter conhecido qualquer outra. Os rumores de tráficos de influências são constantes e incontáveis...
A falta de respeito pelos eleitores - causa primeira da falta de respeito destes pela generalidade dos políticos - tem a sua expressão máxima no politiquês, a linguagem universal do político de sucesso português, seja de Direita ou de Esquerda.
As regras gramaticais são simples: os “nossos” correligionários e as “nossas” acções são sempre excelentes, elevadas e isentas de erro, mesmo que para tal seja necessário contrariar todos os factos, evidências ou regras da lógica. Os “outros” são sempre incompetentes, de duvidosa honorabilidade e uma ameaça ao bem comum. A admissão de um lapso, ou de um erro, é tabu (vejam-se as recentes declarações sobre a Lei da Amnistia de 1999, por parte de todos os quadrantes políticos envolvidos). Se estão em causa razões elementares de ética, cria-se uma cortina de fumo com argumentos jurídico-formais e convocam-se manifestações de desagravo. Se estiverem em causa trâmites processuais a que qualquer cidadão (não político), sem prejuízo da presunção de inocência, se deva submeter com normalidade, invocam-se superioridades morais, pergaminhos anti-fascistas, denunciam-se vagas e sinistras conspirações, abalando, se preciso fôr, alguns dos alicerces do Estado de Direito, assente no primado da Lei e na separação de poderes.
Poucos ousam não se sujeitar aos cânones do politiquês (como, por ex., José Pacheco Pereira ou Manuel Maria Carrilho). Menos ainda se atrevem a ser “politicamente incorrectos”, afrontando os poderes fácticos que - à revelia de qualquer legitimidade democrática - nos vão regendo e frustrando as reformas que se impõem.
Com este caldo de cultura adensa-se uma espiral perversa em que, crescentemente, os mais válidos e mais íntegros fogem da política como de algo pouco higiénico.
Desde 1974, é notória a progressiva degradação do nível do “pessoal político”. Lembram-se dos tempos de Freitas do Amaral, Sá Carneiro, Mário Soares e Álvaro Cunhal? Os “jovens talentos” que está na moda recrutar como “renovadores” dos partidos de poder, rapidamente se submetem à lógica do politiquês, até em casos em que os “sapos” a engolir têm dimensões exorbitantes... Fora dos partidos de poder, vão engrossando grémios sem vocação de governo, em que pouco de substancial une os militantes, para além de iniciativas avulsas, algum folclore e o desencanto com o establishment.
Sendo este, salvo erro grosseiro do escriba, o quadro que predomina na mente de muitos dos governados, conviria que Sua Excelência o PR destapasse esta chaga - porta aberta a infecções de vírus populistas ou outros totalitarismos – em vez de nos vir exigir que, talvez por pudor, a ignoremos.
2003-06-11
Vai uma aposta? (2) Era de prever... O "Globo de Ouro" na categoria Pé-de-Microfone Transatlântico vai exaequo para a RTP1, SIC e TVI.
Um evento singular: Vítor Oliveira Jorge, Arqueólogo e Professor Catedrático da Universidade do Porto, lança hoje em Lisboa um novo livro de poemas - A suspensão do Mundo (Ed. Ausência) – com fotografias de Joaquim Hierro e prefácio de Isabel Pires de Lima. A sessão terá lugar pelas 19:00 horas no salão da Associação dos Arqueólogos Portugueses, no Largo do Carmo, 4 – 1º. Dto.. Incluirá a apresentação da obra por Isabel Pires de Lima e a leitura de alguns poemas por Luís Machado e pelo autor. Para quem ainda não conheça a veia poética de V.O.J., aqui fica, como aperitivo, um “clássico” dos tempos do Campo Arqueológico da Serra da Aboboreira:
estou imóvel no centro do mundo.
o som horizontal dos insectos lamina o ar.
as ervas negras estão paradas, absortas na luz.
os grandes blocos de rocha concentram-se, redondos, em torno do seu âmago.
qualquer movimento, a esboçar-se,
seria esmagado por tão vasto espaço.
as colinas ressequidas inclinam-se para a relva verde
onde o verso seguinte encontra, surpreso, um veio de água,
silenciosa hemorragia da terra.
a consciência tenta fixar-se na nitidez dos bichos, que emergem escuros
como figuras heráldicas, entre as chispas de luz, os estilhaços de som.
mas a respiração da atmosfera fragmenta tudo, o corpo reduz-se a um nódulo de vontade,
as encostas sobem e descem vertiginosamente, na ondulação do calor.
nos altos píncaros, a luz pára, com a nitidez da cegueira.
só o olhar tenta erguer-se, recriar o espaço, alcançar o limite doloroso do verbo.
1979/1988
(in Poemas Aboboraicos, Câmara Municipal de Baião, 1988).
Vai uma aposta? A "garota de Ipanema" dá hoje uma conferência de imprensa, no Rio de Janeiro, à hora dos telejornais. Vamos ver se os media resistem ao sensacionalismo do directo ou se dão a antena a uma fugitiva da Justiça sem mediação jornalística.
2003-06-10
Felizmente: Nelson de Matos decidiu continuar com o seu blog. Se aqui há lugar para todos, ainda há poucos no "ramo" em que ele se situa. Mas lá que pôs o dedo na ferida, pôs...
Infelizmente: Acabou hoje A Coluna Infame. Independentemente de se concordar, ou não, com o estilo ou as causas dos Infames, era um blog imperdível. Aguarda-se o seu regresso.
Excelente: o artigo de Vital Moreira no "Público" de hoje ("Os juízes no pelourinho"). Análise sobre o estatuto dos Juízes e as reformas que se impõem, sem estrondo, podendo ser assinado em baixo por Juízes e Advogados.
2003-06-09
Sub Júdice: No meio da agitação mediática em que a Justiça se vê envolvida, o Bastonário da Ordem dos Advogados (OA) continua a dar exemplos de sensatez e serenidade. Agiu bem e em tempo oportuno na substituiçãoo do Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem. Embora decerto muitos subscrevam algumas das teses do Dr. António Marinho e Pinto, o tom empregue era desnecessário à defesa das mesmas e desadequado na boca de um representante da OA. Na substância, as generalizações defendidas pelo Dr. Marinho e Pinto, como todas as generalizações, foram abusivas. Fizeram recordar, na mesma senda, um célebre artigo do Juíz Dr. Afonso de Melo (na "Tribuna da Justiça", Jan. 85), segundo o qual os Advogados seriam em geral prolixos e obscuros na articulação dos factos, ignorantes ou omissos na invocação do Direito aplicável, constituindo um estorvo à administração da Justiça e uma despesa inútil para os seus constituintes... Convém porém não esquecer que este tipo de generalizações estão muitas vezes presentes na mente dos vários operadores judiciários, provocando um indisfarçável mal estar no relacionamento quotidiano de Magistrados e Advogados. Seria bom que o Congresso da Justiça se detivesse seriamente sobre o tema das relações Magistrados/Advogados, assumindo princípios claros nessa matéria, a implementar em sede de formação e disciplina das profissões forenses. Lembrando sempre a lição de Calamandrei, segundo a qual "beca e toga obedecem à lei dos líquidos em vasos comunicantes: não se pode baixar o nível de um, sem baixar igualmente o nível do outro".
Saudação à blogosfera: Pois é. Aqui está mais um blog à experiência, a confirmar que ninguém resiste a botar sentenças... Num mundo em que tudo é cada vez mais relativo, o Causidicus acredita que ainda há causas pelas quais vale a pena lutar absolutamente. Este blog é dedicado à Sociedade Aberta, Justiça, Media, Cultura, Património e Ambiente e o mais que lembre. Para já, tem um único escriba de serviço e aparecerá quando puder ser, como diria o nosso digno PGR. O autor assina Causidicus porque não gosta de publicidade pessoal, mas assumirá, se fôr caso disso, as suas responsabilidades. Saudações cordiais a todos os bloguistas portugueses!
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